domingo, 26 de agosto de 2012
Dos noventa e quatro não beijei
Por Gustavo Gonçalves
Agora que morri não hei de restringir a ninguém a verdade, afinal, ainda que houvesse alguém para me fazer mal, o que faria? me mataria? Oras, sandices, não se pode morrer duas vezes, se não se anula o sentido da primeira morte e a torna fajuta. Mas deixemos de lado os sentidos fúnebres, cá falemos (e note que o mais apropriado seria escrevamos) das paixões da vida, pois de nada vale uma vida sem uma inquietação sentimental feliz e agonizante.
Foram muitas, tantas garotas, tantas mulheres - o leitor pode acusar-me de filógino, ou pior, de tarado, mas vale lembrá-lo de que estamos proseando sobre meus noventa e quatro anos de vida terrena - e todas incríveis. Sei bem que entregando o enredo por essa introdução infere-se certas coisas, que não tenho intenção de enganá-los, muito menos de não as lhes dizer de forma completamente verídica. Contudo, se o astuto leitor pensou em romances cheios de amor e beijinhos, foi precipitado e ingênuo.
Morri há pouco, mas a verdade que lhes conto ainda me incomoda um tanto razoável. Enfim, encerre-se tal vergonha tola, cá hei de lhes dizer tudo! Fica nem um pouco bem a um velho defunto dizer isso, mas tenho comigo que a vida foi injusta, e eu não oportunista como deveria. A verdade é que não tive nenhum parente de sangue meu para ajudar a depositar as flores em meu caixão nem lágrimas que me tornassem um importante póstumo. Esta melancólica verdade deve-se ao fato de que estava presente em todos os velórios familiares, sendo assim, fui o azarado. Deve estar o leitor se perguntando de minha família, aquela que se supõe que tinha formado ao longo da vida, porém, cá vale alertá-lo de mais um equívoco, mas que não resulta inútil, tomemos este como ponto de partida.
Nunca tive família senão a constituída por meus pais e dois irmãos. Sem esmiuçar demasiadamente sobre o assunto, exprimo-lhes apenas que meus pais morreram de câncer na casa dos sessenta. Já a tragédia de meus irmãos (que eram mais novos) foi em uma viagem em família, fui convidado, mas estava indisposto e zelando por minha exponencial preguiça. O acidente ocorreu e os levou para além de seu destino primário, então fiquei só no mundo. Entretanto, se o leitor cá já se demonstrou enternecido, sugiro que reenvie os sentimentos para o destino do qual provieram e os guarde para que fiquem maduros como frutas, pois assim como as árvores, vai saber o momento de desabrochá-los.
As mulheres a que me referia anteriormente não são ilusões nem contos de vantagem - nada lhes digo aqui senão a verdade - nem picuinha adolescente (acredite, mas já fui um dia). Essas garotas que passaram por minha vida nada mais foram que belas e cândidas imagens femininas, que fizeram despertar em meu coração o sentido da paixão. Conheci-o, vislumbrei-me, peguei por hábito a escrita, como se esta pudesse desacentuá-lo, mas esse sentido entrou de tal forma em minha vida que sem este já necessitava de moletas.
Deveras agora começa o espetáculo de escárnio e humilhação de minha vida, se o leitor tiver bom coração então se inflará o sentimento contido do qual lhe pedi que reguardasse, caso contrário rirá feito um diabo.
A primeira menina que me apaixonei, se não me falha a memória, foi por volta dos nove anos, era extremamente graciosa, sedutora - leitor, contenha-se e lembre-se de que cá descrevo minhas reminiscências de acordo com o momento em que as vivi, não sou nenhum velho tarado, homessa - e de cachinhos maternos. Fora esta a dita cuja a me olhar nos olhos e recursar minha paixão com uma horrenda expressão de nojo e um vocabulário que me sacudira o esqueleto, crê que a ousada me dissera: Você é feio demais! Depois do inconveniente tomei para amigo fiel um espelho, o qual muitas vezes me colocava em opinião divergente da qual a garota dos cachos tivera. Também pudera, estamos cá falando de uma abobalhada de nove anos.
Algum tempo depois do coice da garota (que após o ocorrido já nem me parecia lá grande coisa) acabei por arrumar uma nova paixão. Fora aos quinze - é bem verdade que tivera outras no intervalo, porém nada que se valesse de minhas palavras para registrá-las - e com direito a investidas, pois já estava grandinho demais para apenas observá-la. Com sorte a menina não recusou meu diálogo de introdução, para ser sincero até me achou interessante. Por alguns dias nos conhecemos melhor, enrijecemos os laços afetivos, parecíamos nos empenhar muito bem nesse promissor relacionamento, meu coração tentava pegar por hábito o aceleramento cardíaco, e era esse meu maior desfrute. Até que um dia, vendo que a situação já estava um tanto madura tomei a liberdade de contá-la meus reais sentimentos e intenções. Logo após meu discurso infalível procederam as seguintes palavras: Eu gosto muito de você, mas o que eu sinto por você é apenas amizade, me desculpe.
Imagino que o caro leitor já deve ter sentido o gosto amargo da rejeição levemente pulverizado com o doce da amizade para tornar-se mais fácil a digestão. E devo acentuar que este amargo permanece por muito mais tempo que aquele do insulto, o qual acaba incinerando a paixão e criando cinzas para a constituição da próxima. Já o amargo com amizade faz do sentimento uma serpente, que constantemente estimulada pelas lembranças lhe insere uma boa dose de veneno no peito.
O terceiro caso já havia passado quatro anos do último. Nesta idade que se aproxima dos vinte e que recua da adolescência é uma época um tanto curiosa e decisiva. Encontram-se pessoas determinadas ou totalmente desorientadas, o que afeta muito o nível de amizade de alguns, há aqueles poucos que tomam por impulso e destino tornarem-se adultos, ao tempo que o restante sustenta a própria personalidade pueril por tempo indeterminado. E foi nesse caos psíquico em que encontrei minha terceira paixão mais marcante.
Gostaria de amadurecer-lhes o contexto antes de seu desfecho. Esta que tomou meu coração era uma linda ruiva, que habitava em frente a minha casa (bons tempos, época em que ainda todos em casa possuíam vida). Já não mais frequentava a escola, porém viajava todos os dias para concluir meu nível superior que comecei no mesmo ano em que a conheci, sendo assim, os finais de semana nos reservava alguns encontros espontâneos. Nossa situação progredira muito em um curto espaço de tempo, e para meu contentamento a ruiva não possuía cachos, nem me tratava como seu zeloso amicíssimo.
Reservo-lhes os detalhes de um dia em que minha corrente sanguínea fluíra como nunca antes, mas por um acaso do maldito destino os acontecimentos não assim fluíram tão bem. Um dia a ruiva convidou-me para que lhe fosse fazer companhia num café da tarde. Assim se sucedeu e como um ator que já precede a história a ser atuada, fui crendo em papéis de Romeu e desenlace de Cinderela. Pode o incrédulo leitor pensar que não se passa de uma exaltação de minha parte, que por lógica torna-se parcial a descrição. Entretanto vale-se da também lógica de não possuirmos outra referência de nossa própria vida senão a registrada por nossos próprios globos oculares em sinestesia com os demais órgãos.
Retomando os fatos, a ruiva sentou-se no sofá rente ao meu corpo e então iniciamos um diálogo insinuante, levemente voluptuoso e de aparente futuro. O calor que me fazia afogar em sudorese era ao mesmo tempo apaziguado pelo frio da barriga, o que me transformava numa mistura um tanto inusitada de homem de fogo com pés e mãos de gelo. Um beijo finalmente estava prestes a ser escrito em minha lápide, porém fora roubado pelo ascendente medo da cúmplice, que após o momento descrito parecia recobrar a consciência e assumir a apatia dali em diante. Com um certo ar de determinação a ruiva disse-me: Me desculpe, eu não posso fazer isso, eu tenho namorado.
Depois desse fracasso amoroso vários outros se sucederam, mas tornemos mais breve os relatos para o leitor não se enjoar e tomar por preferência as televisões, afinal estamos falando de uma longa idade de acontecimentos. Contente-se em saber que minha vida foi seguindo e até moderadamente feliz, se não fosse pelos acontecimentos fúnebres familiares que presenciei e cá os descrevi. Fui tornando-me senil e cada vez menos crente e mais frígido em relação ao assunto que me tornava uma peça rara no mundo à medida que o tempo ia se esvaindo.
O privilégio da idade me fizera conhecer e entrar em contato com novas situações quase tão salientes quanto a de meu terceiro caso de paixão, porém, como obra do diabo sempre me faziam acalentar o corpo e logo dar com os burros n'água. Moças solteiras, moças de compromisso fixo, senhoras casadas, idosas viúvas... de todas me fiz conhecer e admirar, porém nunca as fiz minhas, nem por um mísero momento que fosse selado por nossos lábios.
Agora tem o leitor a razão de não haver relatos de famílias de meu sangue descritos, pois bem sabe que o amor é como uma montanha em que possui suas etapas até a chegada ao ápice, e sem um beijo não se há filhos, não por lógica, mas por conveniência contextual.
Perdoe-me por minha desatenção - que é comum no mundo da morte, já que não há mais motivos para fazer da preocupação tão presente como antes em vida - mas meu nome é Estevão Lopes, ou para o leitor mais bem humorado, Virgem Maria. Decerto poderia orgulhar-me de minha integridade virginal se não fosse por um infeliz inseto, um mosquito, que em minha meia idade retirou abruptamente e sem piedade a virgindade de minhas orelhas. Porém, se cá vale a exploração interespecífica, convenhamos que nem meu corpo é mais casto, já que está sendo abusado pelos seres putrefatos que o consomem.
E como epílogo desta triste e também irônica história, acho mais interessante ao leitor valer-se de um sábio conselho, que o acrescentará muito: a vida mais é coisa branda a quem não se abusa dela.
quarta-feira, 22 de agosto de 2012
Trama de sagacidade
Por Gustavo Gonçalves
O dia prometia muito, não para todos, mas especificamente a Renan Asinus. Todas as garotas da escola já conheciam sua fama de pegador, para ser sincero até os rapazes. O camarada parecia estar coberto de mel e o formigueiro feminino o seguia para lá e para cá. De dois em dois dias Renan revesava a dupla de garotas que se encontravam agarradas em seus braços, caminhava feito um cafetão pelos corredores da escola (só lhe faltava um charuto cubano).
Esse dia em questão seria um triunfo para Renan, pois há pouco tempo uma garota chamada Carolina Foetent ingressara em sua escola, mais precisamente no primeiro ano do ensino médio (Renan estava no último ano). O conquistador não se aguentava em si quando viu a menina caminhar pelos corredores a primeira vez, como que em câmera lenta avistou aquele rosto angelical macio e corado, cabelos dourados em corte chanel, olhos azulados contrastantes com o negro da pupila, pálpebras levemente cerradas com uma concavidade felina, o corpo esbelto e sinuoso, um perfume que fazia Renan sentir-se em Paris (ainda que nunca estivera na cidade luz).
O prometido era que ainda nessa semana o sedutor deixaria em seus braços a menina mais bonita que alguém já vira. Devido a algumas afobações e desencontros os dias estenderam-se até quinta-feira, mas o seguinte ficou definido como o dia da conquista. E é deste que tratamos, o qual o formoso ícone feminino se preparava para o galanteio fulminante.
Não menos comum que os outros, o plano era cercá-la na saída após o fim das aulas, e assim nosso hábil namorador o fez. O inconveniente veio logo após a saída dele de sua sala, pois ao identificar Carolina, esta desviara-se para o banheiro, o qual era contrário ao fluxo de pessoas. Como um cão farejador, Renan a seguiu decididamente e num ziguezague furioso rompeu a massa de alunos e estacou-se diante do banheiro feminino.
Os minutos passaram, e nosso sedutor se impacientava a cada segundo. Com medo de ser a piada dos colegas na semana seguinte, tomou uma atitude drástica, entrou no sanitário feminino. Sorrateiramente verificou se não havia alguém o observando - deu sorte, pois não havia uma alma viva sequer - depois atirou-se pela porta do banheiro como se tivesse sido arremessado por outrem, mas sempre abafando seus ruídos. Certificando-se de que mais nenhuma menina se encontrava no ambiente começou a vasculhar os cubículos com privadas, assim que avistou um bem distante e fechado fixou o alvo. Entretanto, ao mesmo tempo ouviu passos e vozes femininas aproximando-se, antes que fosse descoberto e isso lhe custasse uma advertência bem justificada correu para o cubículo ao lado do qual supostamente se encontrava Carolina.
Depois de alguns segundos selado no sanitário, percebeu que as vozes tornaram-se cada vez menos audíveis. Programando-se para o que faria, por um ligeiro olhar avistou uma fresta na parede entre seu cubículo e o de sua deusa nórdica. Mais por uma questão de impulso curioso e masculino, Renan espremeu-se contra a parede e passou a observar o cubículo ao lado, onde estava sua futura garota. A beldade encontrava-se exatamente diante de seus olhos, num ângulo não muito generoso, mas que dava para avistar suas nádegas rentes ao assento do vaso sanitário, suas pernas desnudas e no exato momento começava a trocar de camisa.
Uma explosão de testosterona ascendia dentro do nosso galanteador, a ponto de este não se aguentar e começar a transpirar excessivamente - o que não é para menos, qualquer rapaz que possui uma inclinação sexual à atração feminina suaria litros também - e retirou a blusa. Quando voltou a espremer-se contra a parede o que via era somente o corpo semi-desnudo de Carolina, censurado apenas por um sutiã branco de bolinhas vermelhas e pelo vaso sanitário que cobria sua retaguarda.
Antes que Renan tivesse de engolir o próximo suspiro, ouviu-se um som estranho, porém muito semelhante ao de quando jogamos uma pedra num lago. Em seguida começou uma série dramática de sons semelhantes, alguns mais altos e outros menos - Carolina estava cagando - e logo um cheiro extremamente fétido atingiu, como uma corrente, as narinas de Renan, que sentiu ânsia quase instantaneamente. Não cessado o espetáculo de horrores, começaram os estrondosos peidos, alguns sofridos (percebia-se pelo esforço de Carolina), mas que resultavam em um claro alívio. Alguns com cheiro de repolho estragado, outros com aroma de feijoada amanhecida e alguns que remetiam a ovos podres.
Todo aquele ardor voluptuoso fora cessado e deu lugar ao enjoo do galanteador, não sobrando nenhum vestígio da paixão furiosa. Renan só conseguia ficar falando baixinho consigo mesmo:
- Por fora bela viola, por dentro pão bolorento com feijão, repolho, ovo e sei lá eu mais o quê, tô é fora, que nojenta!
segunda-feira, 13 de agosto de 2012
O pão e circo brasileiro
Por Gustavo Gonçalves
Antes que venha um chato defender seu ponto de vista, não estou defendendo pontos de vista, mas sim o fato simples e prático da realidade. Levando isso em conta começarei pelas novelas. Não ocorre forma mais medíocre e enojante de entretenimento que as novelas, primeiro porque esse tipo de material não acrescenta nada de útil para melhorar a vida das pessoas (salvo aquelas que relatam épocas diferentes, culturas desconhecidas ou obras literárias). Depois porque são meros objetos comerciais de fluxo relativo, se as novelas estão uma porcaria, mas mesmo assim as pessoas gostam, é porque as pessoas são umas porcarias. E com isso a mídia só colabora para manter nossa população abandonada na ignorância enquanto vai engordando os bolsos, mas a solução dessa praga está nas mãos da própria população, que enquanto não desligar a TV e ler um bom livro, nada mudará. A não ser que você pretenda se formar em artes cênicas, será uma grande perda de tempo assistir a novelas.
A política do pão e circo foi empregada no império romano com o propósito de dar comida e diversão à população, assim esta ficava contente e cega em relação às decisões políticas do imperador (não criticando e não se opondo a nada). As novelas, programas de auditório, reality shows e qualquer programação sem consistência informativa e educativa são apenas legados dessa cultura romana (o atual "circo"). Sendo assim, aquele pobre que tem uma vida pacata e um salário indecente continua feliz com sua situação porque tem uma "válvula de escape"(sim, novela é coisa de pobre). Pior ainda é quando a mídia corrompida tenta fazer papel de "boa moça" passando informações totalmente manipuladas com suas concepções políticas. A boa notícia é que há antídoto contra essa picaretagem, a má notícia é que a única forma de combater isso é estimulando a educação, entretanto o Brasil cultiva a ignorância.
É bem provável que alguns já tenham se doído a essa altura, mas antes que me tachem de chato que abomina a diversão alheia, não se trata disso. Apenas digo que as dimensões dessa cultura midiática de massa não se prendem somente a questões de diversão e relaxamento, é uma questão social de abrangência em várias áreas importantes. Sugiro àqueles que gostam de relaxar e se entreter com conteúdos audiovisuais que assistam a um bom filme.
A solução dos problemas do Brasil não estão nas mãos de algum deus benevolente ou de "rezas bravas", mas unicamente na educação de nossa população (agora entende o porquê do governo não se preocupar com esse setor?). Mas infelizmente a solução de algumas coisas em nosso país implica na destituição do cargo de alguns políticos devido a seus interesses pessoais de "encher os bolsos". E enquanto a população não "acordar para a realidade", esses políticos vão fazer o possível e o impossível para prejudicar todos em benefício próprio. E a mídia? Ela é uma prostituta que faz o serviço de acordo com o tipo da demanda, só isso.
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