sábado, 26 de janeiro de 2013
Sr. Splint
Por Gustavo Gonçalves
Mais um dia na saída da escola Voltaire e as únicas almas presentes no pátio escolar eram Josef Montgomery e Adam Splint. Este tinha uma cara chupada de extraterrestre e uma voz de timbre agudo que parecia falar com os dedos apertando o nariz, enquanto aquele era um judeu de voz mole e cabelo raspado.
O pátio escolar quadrado abrigava apenas os dois, embora houvesse mais pessoas na escola - apenas tias, secretárias e a diretora tomando o seu copo de água e arrumando sua maletinha para partir para o almoço -, e os garotos sentaram no chão enquanto esperavam suas mães. Normalmente essa área do pátio estaria com o sol fritando os miolos de alguém, o que não era o caso desse dia, pois estava nublado. Atrás dos garotos havia duas pilastras que sustentavam o corredor do segundo andar, onde se recostavam.
- Que saco, Adam, meus pais estão me negando dinheiro de novo. - diz o judeuzinho esticando as pernas sobre o cimento.
- Ora, ora, e eu que pensei que seus pais confiassem em você. Sinceramente, você tem cara de bobo demais para eles te negarem alguma coisa.
- Eu tenho cara de quê?!... Enfim, não é isso, acho que eles estão sem grana mesmo.
- Puxa vida, Josef! Como assim estão sem grana? Eles são judeus, se bobear deve ter notas de cem dólares escondidas até embaixo do epitélio do seu pai. Acredite em mim, se tem uma coisa que Hitler ensinou aos judeus foi a esconder dinheiro.
- Mas, Adam, faz duas semanas que eu não trago um centavo para o intervalo!
- Qual é a do seus pais, hein? Eles são judeus ou turcos? Ou será que são judeus turcos?!... Malditos turcos otomanos, por que tinham que pegar justo Constantinopla?
- Eles não são turcos. É como eu disse, é só uma fase ruim, eu acho...
- Não existem fases ruins para judeus quando o assunto é dinheiro, vamos lá, aposto que tem uns dez reais escondidos na costura da sua mochila.
Splint abre sua mochila e tira um canivete suíço - sua sorte é que ninguém viu, pois é proibido andar armado na escola - e puxa a mochila de Josef abrindo um rasgo com a faca afiada do acessório na parte do meio perto das alças, onde se apoia as costas.
- Que azar, meu amigo, até tinha uma nota de vinte aqui, mas acabei rasgando ela no meio. E como sua mãe costura bem, nem dá pra perceber as linhas soltando, o que é isso? Ponto cruz?
- Você rasgou minha mochila! - Josef escancara a boca de surpresa - Como vou voltar pra casa agora?! Meu material vai cair tudo e minha mãe vai me matar.
Splint olhou pensativo para o amigo e caminhou desengonçadamente até a lixeira mais próxima. Ergueu o tambor e lançou todo o lixo no chão - havia apenas alguns pedaços de lanches rejeitados e duas latinhas de Coca-Cola. Então Adam pegou o saco preto de lixo que estava no tambor e envolveu a mochila de Montgomery.
- Pronto, aí está, e essa você precisa usar só uma das mãos. De nada por isso.
- Ei, eu não vou andar por aí igual ao velho do saco!
- Relaxa, as gatinhas adoram um mendigo...
- Não, elas não adoram. Não vê como a Andressa odeia chegar perto do Rodolfo só porque o pai dele já foi mendigo?
- Aquela menina não conta, ela compra até cremes da Victoria's Secrets.
- Pelo menos vou conseguir levar meu material embora, espero que não suje...
Os dois se recostaram de novo nas pilastras até o estômago de Josef lançar um estrondoso som de borborigmo. Adam olhou para o amigo inclinando uma das sobrancelhas e franzindo parte de sua testa já com algumas entradas indicando uma calvície prematura em seus cabelos castanhos.
- Minha mãe precisa chegar logo. - diz Josef espremendo as mãos contra o abdômen.
- Tudo bem, isso é só uma sequência de movimentos peristálticos. Eu costumo ter muito disso quando vou dormir, eles são tão altos que parece que tem uma cobra arrotando na minha barriga.
- Mas eu estou com muita fome...
- Hm, que tal uns farelinhos de bolacha de gergelim? É tudo o que eu tenho por aqui...
- Eca!
- Quanta exigência, pensei que estava com fome!... Vamos ver, olha ali, tem uns musgos!
Josef Montgomery olhou para onde o dedo ossudo do amigo apontava - uma pilha de lodo que cobria como um manto de camurça o vão das placas de cimento cinza no chão próximas às bordas da parede - e fez uma expressão de quem chupava limão.
- Eu não vou comer isso!
- Vamos lá, meu chapa! são só umas briófitas. Você come alface não come? É quase isso só que em miniatura. Tem uns rizoides, uns cauloides e uns filoides bem nutritivos. Talvez tenham uns esporófitos também, mas só se tiver chovido por esses dias, esse tempo nublado me engana. Sabe que eu não me lembro de ter chovido, você se lembra?
- Para com isso, eu não vou comer!
- Tá bom filhinho da mamãe, chega na sua casa então e toma seu Ades de maçã e prepara seu terno pra ir para a sinagoga.
No mesmo instante os garotos são interrompidos pela secretária Adriana, uma mulher de uns quarenta anos de cabelos negros esvoaçados e uma cara de formato de banana com um longo queixo pontiagudo.
- Olá, meninos! Ainda estão por aqui?!
- Pois é, nossas mães sempre demoram. - diz Adam com cara de apatia como se repetisse a informação umas trezentas vezes por dia.
- É... antes que eu me esqueça, é que estou meia confusa, que dia é hoje mesmo?
- Hoje é dia vinte e dois. - diz Josef com precisão de um calendário humano.
A mulher esguia, que parece uma bruxa ou um dos integrantes do Ramones, agradece pela informação e volta à secretaria.
- Minha mãe conhece ela desde que eu estava na quarta série. Até que ela é legal. - diz Josef observando a mulher sumir pelo corredor.
- Ela é uma calamidade para a língua portuguesa, isso sim! Como ela pode estar "meia" confusa?! Talvez eu devesse cortá-la ao meio e resolver esse problema para ela. Aposto que essa tia não sabe nem apertar um grampeador, ela deve precisar de uma auxiliar pra grampear provas.
Finalmente o celular de um dos garotos faz um barulho - chegou uma mensagem -, era a mãe de Splint dizendo que já havia chegado e o esperava em frente ao portão da escola.
- É isso aí, meu amigo, vou indo nessa.
- Até amanhã, Adam!
- Até, meu bom amigo! E lembre-se, caso aquela diretora fascista peça a você para entrar numa sala, pois é apenas uma sala de banho... não acredite! Ela está de olho em você faz tempo.
- Tudo bem, até mais.
segunda-feira, 14 de janeiro de 2013
Inspirado em:
Morrer e Viver
Capítulo I – Correndo da morte
Matheus e Robson correram o mais rápido que podiam pela Rua
Alferes Talião, procuravam um esconderijo para escapar da multidão de
mortos-vivos que os perseguia. Todos os comércios estavam saqueados e com os
vidros quebrados, o que não era nada seguro para se instalarem. Nas ruas
restavam apenas carcaças inúteis de carros, placas quebradas, postes caídos e
lixos espalhados pelas calçadas. Uma cena caótica.
- Nós temos que encontrar um lugar rápido, Rob, não consigo
mais correr.
- Aguenta aí, amigo, eu sei que tem alguma casa por aqui.
- Eu não sei mais quanto tempo eu aguento nesse ritmo, acho
que preciso recuperar o fôlego, espera...
Quando Matheus parou ao lado do hidrante para tomar um
pouco de ar, Robson pôde ver com detalhes o que os perseguia. Não eram alguns,
mas talvez dezenas daquelas criaturas fétidas e apodrecidas que um dia já foram
pessoas comuns. Para a surpresa de ambos, o fim da rua também estava obstruído
por um grupo de zumbis rastejando a procura de alguma carne fresca para
rasgarem.
- Não vamos conseguir, Rob! Eles estão por toda parte!
- Cala a boca, Mat!
- Eles nos cercaram, não viu?!
- Eles cercaram esta rua, não a gente, olha aquela esquina
logo em frente...
Os dois retomaram a corrida e viraram a esquina antes que
os zumbis famintos pudessem alcançá-los. Assim como na rua anterior, essa
estava repleta de comércios saqueados, porém, ao seu fim havia um grande portão
de grades e uma grande residência.
- Olha, Rob! Tem uma casa lá na frente!
- Sim, eu vi, vamos correr o mais rápido possível antes que
essas coisas nos alcancem, acha que consegue?
- Vou tentar...
Os dois apertaram mais o passo e fizeram o possível para
não serem avistados. Ao passarem do lado de um beco úmido e escuro se
descuidaram de manter a atenção para o que poderia haver lá. Sem que qualquer
um dos garotos pudesse perceber, uma mão putrefata surgiu da penumbra e agarrou
a perna de Matheus, que levou um tombo. Robson, que estava mais a frente, ficou
estarrecido ao ouvir o grito do amigo.
-ROOOB! ME AJUDA!
-MERDA! LARGA ELE!
Robson correu até um pedaço de poste que estava jogado no meio
da rua. Sem hesitar, meteu o pedaço de cano na mão que agarrava o amigo. O
golpe foi tão forte que arrancou o braço fora. Isso chamou a atenção dos zumbis
que por ali caminhavam e deu a posição dos que os perseguia.
Matheus levantou-se com a ajuda do amigo e ambos se
agacharam perto do carro mais próximo, que beirava a guia, para tentarem
despistar os zumbis.
- Rob... meu deus... achei que fosse morrer, cara... nunca
terei como te agradecer.
- Tá tudo bem, cara, eu acabei com ele.
- Obrigado, de verdade, você salvou minha vida!
- Relaxa, cara... só toma mais cuidado!
Por sorte os poucos zumbis que circulavam por essa rua
voltaram a andar sem rumo, nem a multidão que antes os perseguia parecia
tê-los localizado, porém o dono da mão apodrecida se pôs a luz e começou a
rastejar na direção deles soltando um grunhido.
- Graaaaahrrr...
Os dois miraram no zumbi ao mesmo tempo.
- Mas que porra é essa?!
- Meu deus! Como... pode estar... Nossa!
- Vamos dar o fora daqui, Mat!
O cadáver rastejante estava retalhado pela metade, os
intestinos à mostra, uma gosma preta cobria a parte gangrenada do zumbi, que se
movia com apenas uma das mãos.
Os dois, depois de correrem por mais alguns passos,
chegaram ao fim da rua e posicionaram-se em frente ao portão da grande
residência.
- Cara, nunca vamos conseguir subir aí.
- Ou a gente consegue, ou vamos virar jantar dessas
coisas...
- Mas é muito alto, Rob... Que tal se a gente entrasse
nessas outras casas vizinhas?
- Com esses portões arrombados? Qual seria a diferença
se ficássemos aqui fora? Não, vamos conseguir!
Robson tentou empurrar um dos carros que estava próximo,
mas sem sucesso, o freio de mão devia estar puxado, e quebrar o vidro ali não
parecia uma boa ideia.
O sol começava a se pôr, a luminosidade era tudo o que dava
aos dois um pouco de segurança no meio daquela carnificina ambulante. Os
mortos-vivos eram mais ativos à noite, e por isso costumava ter mais deles
vagando pelas ruas na escuridão.
Muitos destroços espalhados pelas ruas, mas a única coisa
que Robson conseguiu avistar de útil foram duas lixeiras do outro lado da rua,
próximas da esquina da rua de onde tinham acabado de vir.
- Escute bem, Mat, não vamos poder vacilar. Você entendeu?
- Claro, mas no que você está pensando?
- Tá vendo aquelas lixeiras ali? - Matheus consentiu com a
cabeça - Então, vamos ter que correr até elas e trazê-las o mais rápido pra
cá, depois vou encostar uma no portão e tombar a outra pra que a gente suba
nelas e alcance o topo do portão, certo?
- Mas e se essas coisas pegarem um de nós, Rob?
- Para de pensar nisso, não vai acontecer, apenas faça o
que eu te disse!
Os garotos se posicionaram como corredores, inclinados e
com as mãos no chão, e esperaram o momento mais oportuno, onde não houvesse
muitos mortos-vivos vagando. Assim que o fluxo abaixou e o caminhou ficou
livre, Rob deu um salto e pôs-se a correr o mais rápido que conseguia. Matheus
estava um pouco acima do peso, por isso não pôde acompanhar o ritmo do colega,
mas manteve-se numa distância razoável logo atrás.
Chegando primeiro, Rob pegou a lixeira e retornou ao portão
empurrando-a pelas rodas da parte inferior. Matheus não teve a mesma sorte, nem
o mesmo tempo que o amigo, sua lixeira estava cheia de lixo, o que a tornava
mais pesada e difícil de empurrar.
No meio do caminho alguns zumbis que estavam mais próximos
notaram o barulho da caminhada de Matheus e começaram a se direcionar a ele. Em
pânico, o garoto pôs-se a correr mais depressa, e assim que chegou ao local
combinado jogou a lixeira no chão para servir de andar. O problema é que havia
vidro dentro dela, o impacto do vidro quebrando e escapulindo para fora chamou
ainda mais a atenção dos zumbis.
- PUTA QUE O PARIU, MAT!
- Desculpa, cara...
-RÁPIDO, VAMOS!
Rob escalou as lixeiras sem muitos problemas, logo pulou no
portão e se agarrou às grades do topo, conseguindo escorar o pé e manter-se
firme. Mat foi em seguida, mas quando estava sobre a segunda lixeira virou-se e
viu que um zumbi estava muito perto, o que o fez entrar em pânico e começar a
tremer.
-ANDA, MAT! ME DÁ A SUA MÃO! - Gritou Robson se inclinando
e estendendo a mão.
Matheus segurou na mão do amigo, e com o impulso para subir
acabou deixando a lixeira cair, ficando, assim, pendurado pela mão de
Robson.
-VAMOS, CARA! AGARRA O PORTÃO COM A OUTRA MÃO!
- EU NÃO VOU CONSEGUIR, ROB!
E os zumbis logo abaixo erguiam
os braços tentando alcançar suas pernas.
-CALA ESSA BOCA E SOBE LOGO!
Ao mesmo tempo em que essa cena acontecia, uma pequena
sombra observava tudo de dentro da sala de estar da residência.
Com muito esforço Matheus conseguiu segurar a grade, sua
mão suava muito, o que não ajudava. Os dois garotos tinham conseguido ficar em
cima do portão, mas agora tinham outro problema. Era alto demais para pularem,
e não podiam descer escorando as grades, pois os zumbis já tinham aglomerado
ali embaixo e roçavam os braços com ossos expostos por entre os vãos do portão.
A saída foi se moverem até a parede e de lá pularem, pois
havia um pequeno aglomerado de mato seco no meio de um imenso jardim, que só
era interrompido pela residência e pelo caminho de cascalhos que levava do
portão à casa e à garagem.
Os dois executaram bem a queda e não se feriram.
- Que muros altos, cara, sorte que tinha esse monte de mato
aqui.
- Nem diga, Mat, tivemos muita sorte mesmo.
- E agora? Vamos entrar na casa?
- E por que não faríamos isso? Ou acha que pulamos o portão
pra ficarmos andando por esse mato aqui?
- Claro que não, o que eu quis dizer é e se tiver gente
morando aí ainda?
- Só há uma maneira de descobrir isso, meu amigo.
- Mas e se eles tiverem armas, Rob? Tenho certeza que não
vão hesitar em atirar na gente, eu não teria no lugar deles!
- Calma, cara! não vamos chegar arrombando, primeiro eu vou
chamar por alguém e dizer que precisamos de ajuda.
- Tá bem...
Os garotos seguiram a trilha de cascalho, a qual se
encontravam os portões logo atrás deles, havia um bando de mortos-vivos os
forçando, mas eram feitos de aço e resistiram muito bem a toda aquela força.
Quando chegaram próximos à casa branca e rosada perceberam o
quão majestosa construção era. Devia ter uns vinte cômodos ou mais, todos com
grandes janelas cobertas por cortinas tão grandes quanto. A porta da frente era
enorme e feita em mogno escuro, para ter acesso a ela bastava subir alguns
degraus.
Rob e Mat tocaram a campainha, e para a surpresa de ambos
ouviram o latido de um cachorro, que em poucos segundos parou.
- Você ouviu isso, Mat? Tem gente aqui, vamos dizer a eles
que somos amigáveis, que só queremos nos proteger...
- Eu não sei, Rob... eles podem, sei lá, não gostar
disso...
- Cara, se você quer voltar pra ser estraçalhado por aquelas
coisas pode ir. Eu vou ficar.
Tentaram a campainha mais uma vez, porém nenhum ruído dessa
vez.
- Vamos entrar.
Rob girou a maçaneta, e novamente para a surpresa de ambos
a porta se abriu.
- Olá! Tem alguém aí?! Nós estamos entrando, por favor,
fiquem calmos, não queremos arrumar problemas!
Mat veio cobrindo a retaguarda de Rob enquanto entravam na
casa. A imagem que viam era de um palacete comparada ao que estavam
acostumados, porém nada se moveu, nem sinal de que alguém estivesse por
ali.
- Cara, não tem ninguém aqui.
- Mas a gente ouviu o latido de um cachorro!
- Não sei, às vezes foi só uma impressão...
- Não, Rob, tenho certeza de que era um cachorro, vamos
tomar cuidado!
- Ei! Fica calmo, vamos olhar essa sala aqui e ver se encontramos
alguém.
Os dois caminharam pela sala de estar, que também estava
deserta. A lareira estava apagada, havia apenas algumas xícaras sobre uma
pequena mesa com tampo de vidro acima de um tapete de veludo vinho, a TV de LED
estava desligada, as poltronas vazias, uma prateleira de livros bem próxima da
janela tinha algumas fotos expostas em porta-retratos.
- Olha, Rob! Deve ser a família que mora aqui.
- Será que eles foram viajar?
- Não sei, você ouviu o cachorro...
- Oras, podem ter ido viajar e deixado o cachorro... Só
espero que não seja um pitbull - Falou Rob lançando um sorrisinho de sarcasmo.
- Não é, olha aquela outra foto...
- Ufa, essa coisinha não estraga nem minha calça.
Um latido veio do corredor que tinham acabado de passar. Os
dois garotos ficaram em choque, apenas se viraram para ver quem estava por ali
os observando.
- Oi, quem são vocês?
Robson ficou espantado ao ver uma menininha parada segurando
a coleira de um cão. Era a menina da foto, uma doce garota de cabelos negros e
ondulados que iam até os ombros, tinha pouco mais que um metro a pequena
pessoa, a pele um pouco pálida e um rosto muito delicado.
- Você mora aqui, certo?
- Sim, eu estou esperando meus pais, vocês conhecem eles? -
Os pequenos olhos da menina brilharam.
- É... acho que não conhecemos não.
- Qual é o nome de vocês?
- Eu me chamo Robson, e esse aqui é Matheus... e você? qual
o seu nome?
- Eu me chamo Victória, e esse é o Tod.
- Que cachorro bonito, acho que você gosta muito dele, né?
- Uhum.
- É... e seus pais? Onde eles estão?
- Eles foram viajar, eu fiquei aqui com o tio Marcos.
Os garotos se incomodaram com a informação do adulto, ele
poderia não achar nada adequado que dois garotos desconhecidos tivessem pulado
o muro e ficado ali falando com sua sobrinha.
- E seu tio? Onde ele está?
- Não sei, ele disse que ia comprar cigarros uns dias atrás
e não voltou, acho que o tio foi pra casa dele... Tenho medo de ficar aqui
sozinha, por isso eu durmo com o Tod.
Os dois se entreolharam e perceberam o que devia ter acontecido
com o tio da menina. Além de a acharem muito corajosa por permanecer
sozinha na casa naquelas condições que as coisas estavam.
- Não precisa ter medo, agora eu e o Matheus vamos te fazer
companhia.
- É, nós vamos ficar aqui com você, Vic... Ops... Posso te
chamar assim? só de Vic?
- Uhum... é assim que meus pais me chamam, e como posso
chamar vocês?
- Me chama de Mat, ele você pode chamar de Rob.
- Apelidos engraçados - A garotinha soltou uma
risadinha.
No mesmo instante o estômago de Matheus soltou um ruído que
cortou o assunto e aumentou ainda mais o riso no rosto da menina.
- Vic, será que você teria algo pra gente comer? Nós nos
esquecemos de pegar nossas coisas quando viemos pra cá.
- Tem bastante comida aqui, vamos pra cozinha!
A menininha foi caminhando e levando o cachorro pela
coleira até a cozinha, onde apresentou aos garotos um ótimo banquete com suco,
biscoitos, pão e margarina e alguns docinhos.
- Nossa! nunca comi nada igual, essas cookies estão
maravilhosas! – Disse Matheus se empanturrando com a comida.
- Realmente estão ótimas, obrigado, Vic.
- De nada.
- Mas me diga, por que você deixa a porta aberta? Não tem
medo daquelas coisas lá fora?
- Eu morro de medo deles, só abri a porta pra vocês
entrarem... Queria meus pais aqui.
Robson notou a ingenuidade da menina, que teve sorte, pois
se fosse alguma pessoa ruim sabe-se lá o que poderia ter feito com aquela
garotinha.
- Eu tenho um esconderijo, e fico lá esperando meus pais,
daí hoje ouvi vocês e abri a porta, tenho medo de ficar aqui sem ninguém... - O
olhinhos da menina encheram-se de lágrimas.
Os garotos mal podiam acreditar
que ela tinha passado mais de um dia sozinha.
- Ei, fica calma, Vic! Nós estamos aqui com você e não
vamos deixar que nada te aconteça!
- Prometem?
- Claro, eu e o Mat somos seus seguranças agora, vamos
cuidar de você até que seus pais ou o tio Marcos voltem!
A menininha correu até Robson e o abraçou. Seus dedinhos o
apertaram com tanta força que parecia despedir-se dele para o resto da vida.
- Só vai ter que me prometer que vai ser mais cuidadosa, tá
bem? Nós poderíamos ser homens maus, você não pode abrir a porta pra qualquer
um!
- Uhum, eu prometo... Mas se vocês fossem maus o Tod teria
atacado vocês, ele não gosta de homens maus.
A noite começava a cair e o barulho asqueroso daqueles
zumbis começava a ficar mais alto devido ao aumento deles perambulando nas
ruas. O som era terrível, mas dentro da casa onde estavam mal se dava para
ouvir aquele inferno. Apenas Tod soltava alguns latidos de vez em quando.
A garotinha mostrou-lhes o
resto da casa, que tinha dezesseis cômodos, todos muito amplos, inclusive os
quatro banheiros. Porém, todos vazios, apenas preenchidos pelas mobílias.
Depois os garotos fizeram companhia à pequena Vic e
assistiram a alguns desenhos com ela. A menina parecia estar tão alegre que
esquecera a ausência dos pais por uns instantes. Mat deixou as brincadeiras de
lado e foi observar a janela um pouco.
- Ei, Rob, dá pra vir aqui um pouco?
- Tô indo.
A menina se espantou com o repentino chamado, Mat
percebendo isso tentou acalmá-la.
- Não é nada, Vic, eu só quero falar com o Rob, a gente já
volta pra brincar.
A garotinha retornou a pintar a folha em que fazia um
desenho.
- O que foi?
- Percebeu que não tem energia em lugar algum, só
aqui?
- É, eu vi mesmo. Eles devem ter geradores de emergência
pra falta de energia...
- Sim, eles são ricos.
- Sabe... fico feliz que você tenha conseguido se salvar,
nem posso acreditar no que o nosso alojamento virou.
- Eu que tenho que te agradecer, cara, sem você eu não
estaria vivo.
- Bem... e nossos pais? Como será que eles estão? Espero
que o governo tenha conseguido proteger as cidades grandes...
- Eles estão bem sim, pelo visto foi aqui que essa merda
passou dos limites... Nossos amigos... espero que tenham conseguido escapar...
- Pois é... em pensar que falavam que o alojamento que era
seguro, se continuássemos lá acho que não estaríamos mais vivos.
- É... e essa menina? Não achou estranho ela abrir a porta
pra gente? Ela nem nos conhecia.
- Essa garotinha é um doce de criança, teve sorte que
outros não tentaram fazer o mesmo que a gente, os pais dessa menina tinham que
tomar mais cuidado em deixá-la em casa sozinha.
- Ela não está sozinha, esqueceu que tem o tio dela?
- Você sabe muito bem o que deve ter acontecido com ele,
acha que alguém sairia pra comprar algo e sobreviveria lá fora? Ainda mais um
velhote.
- Não sabemos se era um velhote...
- Um cara que fuma e cuida da sobrinha só pode ser um
velhote...
O diálogo dos dois foi interrompido quando Vic veio lhes
mostrar o desenho que tinha feito. Os dois elogiaram os rabisquinhos da garotinha
e brincaram mais um pouco com ela.
Já estava começando a ficar tarde, os dois tinham corrido
muito durante o dia, o mau cheiro era inevitável. Eles perguntaram a menina se
podiam tomar um banho e trocar de roupas. Para a sorte deles o pai da garota
havia deixado umas peças velhas de roupa, que serviriam muito bem em Rob, mas
ficariam um pouco apertadas para Mat.
Havia dois banheiros no andar de cima e dois no térreo, Vic
optou por deixá-los tomar banho nos de cima, que eram próximos de seu quarto e
de outro quarto que os garotos poderiam dormir, o mesmo em que estava tio
Marcos.
Rob foi o último a tomar banho, assim que saiu do banheiro
resolveu dar uma olhada pelos cômodos. No fim do corredor havia uma escotilha
no teto que não fora apresentada aos meninos.
- Hum, deve ser um sótão. - Pensou Rob.
Rob até quis puxar a porta e subir para conhecer um pouco
mais da casa, mas já estava tarde demais e poderia não ser fácil de encontrar o
interruptor da luz lá em cima, além do mais, ele era visita.
Entrando no quarto que lhes foi
concedido foi logo experimentar a cama, apenas Matheus estava no quarto,
Victória permanecia em seu quarto escovando o pelo de Tod. Havia, ao lado da
cama, um criado mudo com uma gaveta. Rob não resistiu à curiosidade e a abriu.
Dentro tinha uma caixinha envolvida numa sacola de plástico.
- Isso parece um... Não pode ser!
Era um maço de cigarros ainda na embalagem.
- O tio dela ainda está aqui!
quarta-feira, 9 de janeiro de 2013
Curiosidade de criança
Por Gustavo Gonçalves
Uma tarde fresca, soprava levemente uma brisa densa, o sol encontrava-se a um palmo do horizonte. O pai estava confortavelmente repousado em sua poltrona azul de veludo lendo as manchetes sobre esportes na sala de estar. Enquanto isso o filho, que brincava com alguns carrinhos os largou e se dirigiu ao pai.
- Pai, o que é amor? - Perguntou inocentemente o filho.
- Hã?... amor?... hum... amor é quando você gosta de alguém, filho. - Respondeu o pai calmamente enquanto virava uma folha do jornal.
- Igual com você e a mãe? Você amava a mãe, pai? - Perguntou o garoto novamente com os olhos cintilantes.
- É, filho... igual eu e a mamãe. - Respondeu o pai virando outra folha do jornal.
- E por que você amava a mamãe? Ela fez alguma coisa pra você amar ela? - Insistiu o garoto no questionário.
- Não existe explicação, filho, a gente simplesmente gosta da pessoa e passa a amá-la, você tem que encontrar algo de belo no coração dela que te encante, entendeu? - Respondeu o pai pacientemente e repousando as folhas do jornal em suas pernas.
- Hum, entendi. - Respondeu o garoto arregalando os olhos.
O menino retornou ao seu posto com os carrinhos e continuou a brincar, o pai o observando retornou a abrir o jornal em seguida. Alguns minutos depois o homem sentiu uma cutucada em sua perna direita, era a mãozinha do filho.
- Pai, por que então que as mulheres usam roupa curta? - Retornou o garoto às perguntas.
- Roupas curtas? - o homem corou um pouco e deu um sorrisinho amarelo - Bem... algumas mulheres gostam de se destacar de alguma forma, daí vestem essas coisas. - Respondeu o pai da melhor forma possível.
- Mas por que elas querem se destacar? - Cravando os olhos cintilantes no pai, o garoto perguntava sem parar.
- Para conseguirem um namorado, para que algum homem olhe para elas e goste delas. - Encolhendo o jornal outra vez, o pai continuou respondendo com paciência.
- Mas você não disse que a gente ama as pessoas e que é só olhar pro coração delas e ver o que tem de bom? - Perguntou o garoto outra vez, mas deixando o pai em saia justa.
- É que é assim, filho, algumas pessoas não sabem o que é amor, e acham que é só a aparência que conta, mas isso não é verdade, o coração da pessoa é o que mais conta. Olha o nosso vizinho, o senhor Adalberto, ele não é feio? Mas mesmo assim ele tem uma mulher que o ama, e isso porque ele é uma ótima pessoa. - Explicou o pai tentando não perder a linha de raciocínio.
O garoto fez cara de quem estava entendendo tudo e num salto retornou a brincar, o pai perdeu o ânimo de ler o jornal e ficou pensando no questionário do filho. Mais uns minutos e novas cutucadas.
- Pai, por que você não fala pra essas pessoas o que é o amor então?
- Não é tão simples assim, filho... tem gente que nunca vai entender o que é amar alguém, essas pessoas sempre vão vestir roupas curtas achando que esse é o melhor caminho. Você ainda é criança, não vai entender tão bem...
- Hum, então quem usa roupa curta não sabe o que é amor?
- Não é exatamente assim, filho, tudo depende da intenção da pessoa, a roupa nem sempre mostra quem você é totalmente por dentro.
- Hum, entendi.
- Mais perguntas? Ou por hoje acabaram?
- É... Por que a vizinha esses dias disse que homem bom é homem com pegada? Pra amar tem que deixar pegadas no chão também?
- Não escute aquela velha louca, filho, - o homem soltou uma leve gargalhada pelo trocadilho inocente do filho - ela não sabe o que fala... isso é coisa de animal irracional que não quer amor, quer outra coisa que só quando você for adulto vai entender...
- Sabe, pai, com você agora falando eu acho que o amor não é tão complicado como todo mundo fala.
- As pessoas falam muito, falam tanto que nem sabem o que estão falando, ou fazendo, daí acabam fazendo bobagens e acreditando nelas... O amor não é complicado, as pessoas é que dificultam tudo, se elas fossem crianças, assim como você, elas saberiam o que é amar.
Depois do incansável questionário o garoto finalmente se deu por convencido e foi tomar banho. Ele, que tinha apenas o pai, pois a mãe havia morrido no parto, sempre o questionava incessantemente.
Dez anos depois o pai do garoto morreu num acidente de carro. O menino, que já completava quinze anos, emudeceu-se no velório, manifestava-se apenas um choro torrencial em seu semblante, porém, mudo.
Mais dez anos se passaram depois desse dia trágico e tempestuoso. O menino, que agora já era rapaz, encontrava-se na lápide de seu pai jogando algumas flores. Nisso uma roliça senhora que por ali caminhava se aproximou do rapaz.
- Eu conheci o seu pai... seu nome é Estevão, não é? - Perguntou a mulher rechonchuda que tinha cara de bondosa.
- Sim, sou eu... Perdoe-me, nós nos conhecemos? - Perguntou o rapaz um pouco confuso com a surpresa.
- Eu sou sua ex-vizinha, morava de frente com o senhor Adalberto, te conheço desde muito pequeno, lamento muito pelo seu pai, ele era um ótimo homem e excelente vizinho... - Respondeu a mulher com ar de consolo.
- Obrigado, sinto muito a falta dele... - Disse o rapaz com um enorme aperto no peito.
- Eu imagino, deve ser uma perda terrível... Mas e você, não se sente muito sozinho? Desculpe a intromissão, mas você não tem uma namorada ou já é casado? Faz muito tempo que não o vejo... - Falou a mulher com tanta curiosidade que parecia estar numa cafeteria jogando conversa fora.
- Não, - o rapaz corou de leve - eu não tenho ninguém, moro com meus avós agora. - Respondeu Estevão fixando o olhar no chão.
- Perdoe-me se te constrangi, eu sou um pouco especuladora mesmo às vezes... Mas acho que você deveria arrumar uma namoradinha da sua idade, uma moça bonita, você é um rapaz bonitão, não deixe o tempo passar! - Disse a mulher com entusiasmo na expressão.
- Obrigado pelo elogio - sorriu o rapaz -, mas acho que nunca encontrei ninguém até hoje porque meu pai me ensinou o que é o amor... - Respondeu Estevão com o olhar penetrante.
- Mas então não entendo, se ele te ensinou, por que continua só? - Indagou a mulher com cara de bolacha franzindo a testa.
- É que as outras pessoas não tiveram o meu pai para ensiná-las, todas as pessoas que conheci não sabiam o que é o amor, é por isso que continuo sozinho... Bem, preciso ir andando, tenho que pegar o remédio do meu avô, foi um prazer reencontrá-la, até mais! - Despediu-se Estevão da mulher rechonchuda e partiu.
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