sábado, 26 de janeiro de 2013


Sr. Splint
Por Gustavo Gonçalves

   Mais um dia na saída da escola Voltaire e as únicas almas presentes no pátio escolar eram Josef Montgomery e Adam Splint. Este tinha uma cara chupada de extraterrestre e uma voz de timbre agudo que parecia falar com os dedos apertando o nariz, enquanto aquele era um judeu de voz mole e cabelo raspado.
   O pátio escolar quadrado abrigava apenas os dois, embora houvesse mais pessoas na escola - apenas tias, secretárias e a diretora tomando o seu copo de água e arrumando sua maletinha para partir para o almoço -,  e os garotos sentaram no chão enquanto esperavam suas mães. Normalmente essa área do pátio estaria com o sol fritando os miolos de alguém, o que não era o caso desse dia, pois estava nublado. Atrás dos garotos havia duas pilastras que sustentavam o corredor do segundo andar, onde se recostavam.
   - Que saco, Adam, meus pais estão me negando dinheiro de novo. - diz o judeuzinho esticando as pernas sobre o cimento.
   - Ora, ora, e eu que pensei que seus pais confiassem em você. Sinceramente, você tem cara de bobo demais para eles te negarem alguma coisa.
   - Eu tenho cara de quê?!... Enfim, não é isso, acho que eles estão sem grana mesmo.
   - Puxa vida, Josef! Como assim estão sem grana? Eles são judeus, se bobear deve ter notas de cem dólares escondidas até embaixo do epitélio do seu pai. Acredite em mim, se tem uma coisa que Hitler ensinou aos judeus foi a esconder dinheiro.
   - Mas, Adam, faz duas semanas que eu não trago um centavo para o intervalo!
   - Qual é a do seus pais, hein? Eles são judeus ou turcos? Ou será que são judeus turcos?!... Malditos turcos otomanos, por que tinham que pegar justo Constantinopla?
   - Eles não são turcos. É como eu disse, é só uma fase ruim, eu acho...
   - Não existem fases ruins para judeus quando o assunto é dinheiro, vamos lá, aposto que tem uns dez reais escondidos na costura da sua mochila.
   Splint abre sua mochila e tira um canivete suíço - sua sorte é que ninguém viu, pois é proibido andar armado na escola - e puxa a mochila de Josef abrindo um rasgo com a faca afiada do acessório na parte do meio perto das alças, onde se apoia as costas.
   - Que azar, meu amigo, até tinha uma nota de vinte aqui, mas acabei rasgando ela no meio. E como sua mãe costura bem, nem dá pra perceber as linhas soltando, o que é isso? Ponto cruz?
   - Você rasgou minha mochila! - Josef escancara a boca de surpresa - Como vou voltar pra casa agora?! Meu material vai cair tudo e minha mãe vai me matar.
   Splint olhou pensativo para o amigo e caminhou desengonçadamente até a lixeira mais próxima. Ergueu o tambor e lançou todo o lixo no chão - havia apenas alguns pedaços de lanches rejeitados e duas latinhas de Coca-Cola. Então Adam pegou o saco preto de lixo que estava no tambor e envolveu a mochila de Montgomery.
   - Pronto, aí está, e essa você precisa usar só uma das mãos. De nada por isso.
   - Ei, eu não vou andar por aí igual ao velho do saco!
   - Relaxa, as gatinhas adoram um mendigo...
   - Não, elas não adoram. Não vê como a Andressa odeia chegar perto do Rodolfo só porque o pai dele já foi mendigo?
   - Aquela menina não conta, ela compra até cremes da Victoria's Secrets.
   - Pelo menos vou conseguir levar meu material embora, espero que não suje...
   Os dois se recostaram de novo nas pilastras até o estômago de Josef lançar um estrondoso som de borborigmo. Adam olhou para o amigo inclinando uma das sobrancelhas e franzindo parte de sua testa já com algumas entradas indicando uma calvície prematura em seus cabelos castanhos.
   - Minha mãe precisa chegar logo. - diz Josef espremendo as mãos contra o abdômen.
   - Tudo bem, isso é só uma sequência de movimentos peristálticos. Eu costumo ter muito disso quando vou dormir, eles são tão altos que parece que tem uma cobra arrotando na minha barriga.
   - Mas eu estou com muita fome...
   - Hm, que tal uns farelinhos de bolacha de gergelim? É tudo o que eu tenho por aqui...
   - Eca!
   - Quanta exigência, pensei que estava com fome!... Vamos ver, olha ali, tem uns musgos!
   Josef Montgomery olhou para onde o dedo ossudo do amigo apontava - uma pilha de lodo que cobria como um manto de camurça o vão das placas de cimento cinza no chão próximas às bordas da parede - e fez uma expressão de quem chupava limão.
   - Eu não vou comer isso!
   - Vamos lá, meu chapa! são só umas briófitas. Você come alface não come? É quase isso só que em miniatura. Tem uns rizoides, uns cauloides e uns filoides bem nutritivos. Talvez tenham uns esporófitos também, mas só se tiver chovido por esses dias, esse tempo nublado me engana. Sabe que eu não me lembro de ter chovido, você se lembra?
   - Para com isso, eu não vou comer!
   - bom filhinho da mamãe, chega na sua casa então e toma seu Ades de maçã e prepara seu terno pra ir para a sinagoga.
   No mesmo instante os garotos são interrompidos pela secretária Adriana, uma mulher de uns quarenta anos de cabelos negros esvoaçados e uma cara de formato de banana com um longo queixo pontiagudo.
   - Olá, meninos! Ainda estão por aqui?!
   - Pois é, nossas mães sempre demoram. - diz Adam com cara de apatia como se repetisse a informação umas trezentas vezes por dia.
   - É... antes que eu me esqueça, é que estou meia confusa, que dia é hoje mesmo?
   - Hoje é dia vinte e dois. - diz Josef com precisão de um calendário humano.
   A mulher esguia, que parece uma bruxa ou um dos integrantes do Ramones, agradece pela informação e volta à secretaria.
   - Minha mãe conhece ela desde que eu estava na quarta série. Até que ela é legal. - diz Josef observando a mulher sumir pelo corredor.
   - Ela é uma calamidade para a língua portuguesa, isso sim! Como ela pode estar "meia" confusa?! Talvez eu devesse cortá-la ao meio e resolver esse problema para ela. Aposto que essa tia não sabe nem apertar um grampeador, ela deve precisar de uma auxiliar pra grampear provas.
   Finalmente o celular de um dos garotos faz um barulho - chegou uma mensagem -, era a mãe de Splint dizendo que já havia chegado e o esperava em frente ao portão da escola.
   - É isso aí, meu amigo, vou indo nessa.
   - Até amanhã, Adam!
   - Até, meu bom amigo! E lembre-se, caso aquela diretora fascista peça a você para entrar numa sala, pois é apenas uma sala de banho... não acredite! Ela está de olho em você faz tempo.
   - Tudo bem, até mais.

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